Voa, pula e ruge alto: eu sou eu e tu quem és?
A história abaixo faz parte de uma peça teatral infantil escrita há quase três décadas e, no entanto, ainda nos deparamos com o mesmo problema de saúde pública abordado no texto. Fico me perguntando como algo tão simples de ser evitado consegue perdurar em nossa sociedade, demonstrando que muitas vezes nossa ignorância e nossa falta de educação suplantam nossa capacidade de agir com bom senso.
Minha eterna gratidão a Carlos Roberto Petrovich (in memoriam), pela sensibilidade de acolher a peça à época e pela grande contribuição na estruturação da mesma, figurando como coautor.

CENA IX
SOPAPO e SAPÉ
Entram Sopapo e Sapé. Pelo outro lado, vai entrar um Mosquito. Ele ficará voando ali por perto, sem se dar conta dos predadores.
SAPÉ Você viu, compadre Sopapo, a falta de educação daqueles três? Até parece que a floresta está pegando fogo. Quase nos acidentaram!!!
SOPAPO É verdade. Esses bichos estão cada vez mais atrapalhados. Depois dizem que os sapos são desajeitados. Bem, vamos procurar uma sombra, pois o dia hoje está quente pra caramba!
SAPÉ É, o sol já vai alto no céu. Vou pegar essa folha pra passar aqui nas minhas costas. Está doendo da porrada que eles me deram. Me ajude aqui, Sopapo. Vamos passar aqui embaixo dessa Macieira. (Sopapo passa a folha nas costas de Sapé).
SOPAPO Ah! Que sombrinha agradável!
SAPÉ Hummmmmmmm! Está mesmo, que alívio!
SOPAPO Chegue mais para cá, Sapé. Aqui, juntinho de mim, a sombra está mais gostosa.
(Sapé chega um pouco mais para perto dele).
SOPAPO Chega mais um pouquinho.
(Sapé chega ainda mais).
SOPAPO (Encostando o rosto nela). Assim não está bem melhor?
SAPÉ Ah! Está mesmo! Olhe, espere ai, é só passada de folha. Nada mais. Afaste sua mão boba daí. (Faz-se uma pequena pausa). Sopapo, sabe que ontem eu descobri uma coisa muito interessante?!?
SOPAPO É? e o que foi? Você só vive pesquisando, né? Essa curiosidade feminina!
SAPÉ Descobri que nós somos predadores.
SOPAPO Ora essa! E desde quando a gente come pedra para ser pedrador?
SAPÉ (Sorrindo) Não, seu bobo. Não é pedrador. E isso não tem nada a ver com pedra.
SOPAPO (Surpreso) Ah, não? Ué, então o que é um pedrador?
SAPÉ P-R-E-D-A-D-O-R é um animal que se alimenta comendo outro animal.
SOPAPO Ah! Então é isso?!? (Surpreso) Onde você ficou sabendo essas coisas?
SAPÉ Foi ontem pela manhã. Eu estava atravessando a clareira e vi algumas pessoas fazendo um piquenique. Quando eu cheguei mais perto para observar melhor, um garoto me avistou e começou a me atirar pedras. Sopapo, eu fiquei tão apavorada!!!
SOPAPO Nossa! E aí, o que aconteceu?
SAPÉ Bem, aí uma mulher muito bondosa disse para ele parar de fazer aquilo. E explicou que nós, os sapos, somos muito úteis.
SOPAPO Ué, e que utilidade podemos ter além de ser usados como couro de bolsa?
SAPÉ Calma! Você não me deixa terminar! (Continuando) Ela disse que nós somos muito úteis porque nos alimentamos de insetos, impedindo que eles se multipliquem demais. Os predadores ajudam a manter o controle sobre a quantidade populacional de determinados bichos. Ajudam a manter o equilíbrio ecológico. O equilíbrio da floresta e da vida.
SOPAPO É mesmo?! E o que mais, minha cientista?
SAPÉ Deixe de brincadeira... Além disso, ela explicou que nós não somos maus. Nós só caçamos quando temos fome; enquanto o homem, este sim, mata por prazer, sem se preocupar com a destruição da Natureza.
SOPAPO (Sorrindo) E ainda dizem que o homem é um animal que pensa. Eles estão caminhando para o fim da própria espécie, por ganância. E nós, vamos agora é viver o nosso dia (Os dois ficam gargalhando).
CENA X
SOPAPO, SAPÉ e KITO
KITO (Passa voando pertinho dos sapos) Zuuuuuuuuummmmmmmmmmmm!!!
SAPÉ (Avistando o Mosquito) Veja, Sopapo, temos aqui uma deliciosa refeição? Ora, se temos. (Lambe os beiços).
Neste momento, o Mosquito se apercebe da ameaça e fica paralisado de medo).
SOPAPO Oba!!! Já estava morrendo de fome!
SAPÉ Nada disso, Sopapo! Esse Mosquito é meu!
SOPAPO Vamos bater par ou ímpar?
SAPÉ Não, é meu! É meu! (Enquanto os dois discutem e jogam outros jogos)
KITO (Para a plateia) Êpa, minha gente, estou metido em uma boa enrascada. Qual é a saída? Preciso me lembrar rápido de tudo que aprendi dos mestres da floresta. O conhecimento é para essas horas. Preciso manter a calma. Vejamos: com os grilos aprendi a ficar debaixo das folhas, folhas grandes não tem por aqui. Aprendi a correr pra boca de jacaré, jacaré aqui não há mais. Ah! aprendi a atravessar o rio, mas não há rio aqui. E agora, Mosquito José? Vamos tocar uma valsa vienense? Ah, lembrei da Raposa e as Uvas, mas essa fábula não vai me ajudar. Ah! Vem-me à lembrança a jogada do Lobo Mau com Chapeuzinho Vermelho! Ah! Nessa tem. Mas eu não tenho cara de lobo. Eu sou apenas um mosquitinho ator. O que eu queria mesmo era ser poeta, como Fernando Pessoa. Vejam, ouçam, sintam.
"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente"
Êpa! Eureka! Abracadabra! Viva meu Anjo da Guarda! Já sei o que fazer: vou fingir que estou doente. E eles desistem de me pegar. À cena, o ator. (Começa a caracterização) Hum... deixe-me ver: ombros caídos, olhos semicerrados, semblante desconsolado e um leve tremor no corpo para indicar fraqueza. Acho que assim está bom. Um pouquinho de lama pra ficar mais verde. (Olhando para o céu) Ajudai-me, meu caboclo protetor dos mosquitos. (Se benze e volta-se para os sapos. Move-se em direção a eles).
SOPAPO (Indicando o Mosquito) Sapé, filha de Deus, não lhe parece que esse mosquito está assim, um pouco passado?
SAPÉ Hummmmm... Pensando bem, olhando assim mais atentamente, parece-me que esse Mosquito está um tanto lânguido: os olhos um pouco caídos... uma aparência meio... meio... como direi? Ah! meio dengosa!
SOPAPO (Dá um grito desesperado) DENGOSA??? Meu Deus!!! É um mosquito transmissor da dengue!! (Fecha a boca com uma das mãos).
SAPÉ (Também assustada) Ainda bem que não o comemos. Já tinha mesmo ouvido falar sobre uma provável epidemia de dengue deste lado da floresta. Enquanto não passar essa epidemia, nós só vamos comer mariposas e outros insetos. Não convém arriscar comendo mosquitos. (Assume um ar professoral) Principalmente os de lá do brejo. Eu ouvi dizer que os mosquitos da dengue gostam muito de ficar em locais úmidos onde tenha água parada. (Suspira) Só assim eu começo a fazer uma dieta de verdade. (Apalpando a barriga) Quem sabe eu fico mais elegante, né Sopapo? (Olha surpresa para ele, que ainda se mantém com a boca fechada) Ô criatura, você não vai dizer nada não, é?
SOPAPO (Contrariado) Claro que não, Sapé! Então você não sabe que em boca fechada não entra mosquito? (Fecha a boca novamente).
SAPÉ Ih, é mesmo! Simbora, Sopapo! Vamos atrás de uma refeição mais saudável! (Olhando em redor) Mas olha só como está isso aqui, cheio de coisas que podem juntar água parada. Vamos lá! Antes de sairmos vamos pelo menos tentar tirar essas coisas. (E enquanto vão saindo, vão tirando do caminho alguns objetos que podem estar acumulando água: pneu, vasilhas sem tampa, etc.).
CENA XI
KITO
KITO (Com a plateia) O Mosquitinho é fingidor e finge tão completamente que chega a fingir que é amor, o amor à vida que ele sente. (Joga um beijo para a plateia e sai voando do palco).